quarta-feira, 21 de março de 2012

Um conto em três partes... essa é a primeira.

Dono



Um homem estava sentado num banco, embaixo de uma árvore. Tinha os olhos grandes e ferozes, como os de um leão, e os cabelos moldavam-lhe o rosto como uma juba. Seu rosto era sério, e ele, dedicado a seus pensamentos, mal percebeu a chegada de uma mulher. A jovem sentou-se a seu lado e ficou observando-o por uns instantes.
-         Ei, posso falar com você um minuto? ela perguntou.
Ele virou-se para ela, e com o olhar mais irado que tinha, respondeu:
-         Já está falando, não está ?
-         Bem, é que eu ...
-  Você não percebe que eu estou muito ocupado?
-         Eu sei, mas é que ...
-         Se você soubesse, não me interromperia!
-         Mas, eu sei.
-         Sabe nada. Você veio aqui para perturbar o meu silêncio e a minha concentração.
-         É exatamente sobre isso que eu quero falar!
-         O meu silêncio ?
-         É que o seu silêncio, ou melhor, os ecos dele, chegaram até lá em cima, e ...
-         Como você pode saber do meu silêncio? Que história é essa ?
-         É que eu ...
-         E essa sua fantasia? Não percebeu que está quebrada ?
-         Fantasia?
-         É, essas suas asas de anjo. Por quê não consertou antes de vestir? Ah, já sei. É uma fantasia de anjo estilizada. Sei, sei, anjo com uma asa só. Que tipo de anjo é mesmo ?
-         Mas eu não estou vestida de anjo.
-         Ah, então devo ter bebido mais do que eu penso.
-         Essa asa é de verdade!
O homem riu alto, como não ria há um certo tempo.
-         Gostei da sua brincadeira. Muito espirituosa. Vou até perdoar você ter interrompido meus pensamentos.
-         Mas eu estou falando a verdade! Quer tocar na asa?
-         Não, eu tenho mais que fazer. Me dê sossego!
-         Olha, eu tenho um recado pra você.
-         Recado de quem ? perguntou, mostrando certa indignação.
-         Recado do pessoal lá de cima.
-         Já sei. Você vai dizer que é um anjo enviado por Deus, e que ele me ama. Já assisti essa série na televisão. Você tinha começado tão bem, eu tinha até gostado da brincadeira! Você poderia ter inventado algo mais original pra me dizer.
-         Mas, é que você não me deixou terminar de falar...
-         Desculpe. Tá bem, anjinho da asa quebrada, fala.
-         Mas eu não sou anjo!
-         Se não é anjo, então por quê veio interromper meus pensamentos ? Se é pra dizer que Deus existe, perdeu seu tempo, porque eu já sei isso.
-         Eu sei que você sabe.
-         Então por quê interrompeu meus pensamentos ? Não sabe que meus pensamentos e meus sentimentos são muito importantes ?
-         Eu sei, conheço uma boa parte dos seus sentimentos.
-         Acho que não conhece, não. Porque se conhecesse saberia que ... Espera aí, que espécie de anjo é você?
-         Mas eu não sou anjo!
-         Então por quê essa asa ?
-         Não sei. Só sei que a tenho. Eu gosto dela.
-         E não sabe por que tem?
-         Não. Acho que é vontade de voar.
-         Que adianta voar se você não é um anjo?
-         Não sei. Eu não sei tudo.
-         Gostaria de ser um anjo?
-         Não sei. Acho que teria de ser muito humana para ser um anjo, e eu não sou tão humana assim. Quer dizer, eu teria que compreender muito as pessoas, e  isso não é fácil.
-         O que você é, então?
-         Um ser humano, como você.
-         Mais uma do jardim das espécies ...
-         Espera, eu tenho uma coisa pra te dizer!
-         Sei, um recado.
-         É, um recado.
-         Do povo lá de cima.
-         É, do povo lá de cima.
-         Vai, fala. Que é que eu fiz de errado agora ?
-         Nada, você não fez nada. Só me pediram pra enviar essa mensagem.
-         E qual é ?
-         Me pediram pra falar sobre ... sobre o amor.
-         O quê ?
-         Me pediram pra dizer que o amor foi feito pra você.
-         Só isso ?
-         Só.
Um segundo de pensamentos cortou o ar.
-         Eu tenho que pensar nisso. Você pode me deixar sozinho agora?
-         Tá, mas eu volto.
-         Por quê ? Pra quê?
-         Porque eu gostei de você.
E antes que ele começasse a gritar “vai embora!”, ela saiu dando uma ruidosa gargalhada.


Maiaty S. Ferraz

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